sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Impressões de um Turista e a fotografia em Moçambique.


(Elegia à fotografia, ou uma versão PALOP de “Um americano em Paris”)





Texto de António Maria G.Lemos.


PARTE 1

Desde os tempos em que eu estupidamente orgulhoso cantarolava “fui ao mato, cortei mato e ainda trago fumo no papo”, até hoje, de barba por fazer, chego à conclusão que o fomento da psicose de perseguição foram e são características instrumentalizadas à perfeição em várias etapas da minha vida. Vivenciadas em diferentes modelos de governo e em diferentes continentes.

No entanto reconheço que na época colonial, quando o desrespeito dos direitos humanos da população moçambicana era maior que na governação atual, até mesmo quando a Frelimo já se expandia em todo o território colonial, ainda se podia tirar fotos de lugares públicos.

Muitos e muitos anos depois de andar cantarolando de pulmões enfumarados, prontos para explodir numa tosse convulsiva, passei a visitar Moçambique e já cá vim quatro vezes.

Hoje ao se desembarcar num aeroporto moçambicano, visitar uma Estação de Comboios, uma Câmara Municipal, etc., se não for rápido no clicar terá logo um policial pela frente colocando rudemente a mão na frente da câmara; "é proibido tirar foto!" Me disseram em tom irônico que se ele for "tolerante" você salva as fotos pagando um "refresco, porque em Moçambique está sempre muito calor, até no inverno, pá!"

Confesso que fiquei surpreso quando na ultima vez em 2011, ainda fui recebido com tão rudes modos. Uma espécie de vício passado agora institucionalizado. Um “welcome made in Mozambique”.

Como havia tantos chineses dentro e fora do aeroporto, fiquei na duvida se tal rudeza se devia ao facto do piloto por engano, ter aterrado na Praça da Paz Celestial em Pequim, e não no aeroporto de Maputo. Pois na China sim, também não se pode fotografar à vontade. E dependendo do lugar que se queira visitar, querendo ou não, ainda tem que se andar de tradutor oficial do estado a tiracolo. (Turismo, all included made China).

Já fotografei a ONU em Genebra (por dentro) e Buckingham Palace em Londres. A entrada da casa do primeiro ministro inglês (com um policial desarmado na porta, sorrindo para a foto). Vários aeroportos e estações de comboio do mundo. As salas de debates dos parlamentos, escocês, finlandês e suíço - gosto de fotografar antros democráticos - e ninguém me pôs o dedo no nariz, como se fosse um “mwana” apanhado a urinar em via pública.

Será que em Moçambique essa fobia à fotografia ainda é ranço da censura da ditadura pós-independência? Ou será que confundem o clicar da máquina com o clicar do engatilhar de uma arma? Mas a minha máquina já nem clique faz!

Quando me perguntam o que estou fazendo em Moçambique digo honestamente o que sou: TURISTA.

E ás vezes o olhar que recebi de resposta, nos interiores que por onde andei, denunciavam um pensamento; “essa profissão não conheço.”

No entanto por respeito ao próximo, acabo por esclarecer que apesar de nascido e criado em Moçambique, paguei 90,00 dólares por um visto de turista e uma passagem aérea das mais caras que existe da Europa para países africanos, para poder visitar amigos, familiares e fotografar as minhas recordações de viagem.

Sou daqueles turistas, que consome e viaja pelo país todo.

Pega autocarro com ar-condicionado e faz Maputo-Beira. Segue depois para Chimoio, Manica... Mas também anda na caçamba de uma carrinha se outro jeito não houver, de chegar ao destino tão ansiado.

Que já esteve também em lugares como Chókwè, Inhambane, Bazaruto, Ponta do Ouro, Namialo, Nampula, Ilha de Moçambique, Quelimane terra das lindas morenas, Pemba, Lichinga, etc. E ao chegar a Metangula e ver aquele paraíso natural, não consegue evitar que lágrimas de alegria e admiração se juntem ás águas doces do Niassa.

É assim que gosto de viajar em Moçambique e outros países. Recolhendo e colecionando impressões aqui e ali. Uma hospedagem em casa de amigos, de desconhecidos que viram amigos, hotéis mais simples ou mais caros. Mas sempre trocando experiências vividas com o mais diverso tipo de pessoas. Independentemente das suas idades, origem social, religiosa ou racial.

Perceber na rua como o moçambicano de hoje pensa e vive. Suas aflições com o futuro dos filhos, família, trabalho. Enfim dividir e trocar as alegrias e tristezas do dia-a-dia com os cidadãos locais, por onde passo. Perceber que os jovens são iguais em todo mundo. Gazelas saltitantes que não querem mais comer no pasto das gazelas de ontem. Os anafados hipopótamos de hoje.

O velho conflito de gerações que se encontra nos quatro cantos do Globo. Todos nós já fomos um dia gazelas. A rebeldia típica da idade que não se pode deixar de levar a sério nem desrespeitar, me foi expressada pelas palavras de um estudante universitário no autocarro para a Beira; “Opá que me interessa o tempo colonial ou a política? Esses velhos são todos iguais. Querem guerra ou ganhar dinheiro. Ou as duas coisas, para ganhar em dobro. Eu nasci independente e sou roubado desde que abri os olhos. Precisamos de sangue novo e honesto, meu!”

Não pude deixar de pensar nos recentes movimentos lançados por jovens mundo afora, e hoje alguns deles, por vezes já instrumentalizados por outras forças políticas e pseudo-religiosoas. Os desempregados na Espanha, os da “Primavera” no Egito, Líbia e Síria. No parqueTaksim Gezi na Turquia, e dos que protestam do norte ao sul do Brasil. Consequência do cansaço dos jovens para com as falsas promessas e desrespeito aos seus direitos humanos e sociais, feitas pelos os hipopótamos de lá.

Sou turista que adorou ver o trabalho que está sendo feito na Gorongosa nos três dias que lá passei. Gostaria que os governos nacional e regional lhes dessem mais apoio, para que um dia possamos concorrer com os parques naturais que arrecadam tantas divisas nos países vizinhos. Deixo aqui registrado o meu respeito e admiração pelo trabalho feito por todos os funcionários do Projeto Gorongosa – da limpeza, à administração, restaurante, guardas e guias florestais - que me revelaram a sua simpatia e profissionalismo. E podia fotografar tudo!

Vocês são os Heróis em Tempos de Paz. Porque reconstroem uma parte do nosso país - destroçado outrora por irmãos insensatos e brigados. Para evitar que um dia os nossos netos, tal como as crianças europeias hoje, tenham que ir ao Zoológico para ver um animal da terra. Uma relíquia viva, entre grades.

PARTE 2

Mas voltando ao clicar. Maldito clique, porque és tu ainda um problema nesta terra?!

Em Chimoio vivi uma exceção a essa regra. Havia uma festa local de comemoração do combate à SIDA. Assisti como turista a uma corrida de bicicletas. Cada uma delas de um modelo diferente e com diferentes anos no lombo. Sob um sol escaldante pedalaram não por milhares de euros de prémio, e nem dopados estavam. Talvez um ou outro que já havia festejado antes da partida, estivesse carburado com nipa. Mas todos eles, suaram pelo prémio final, uma bicicleta novinha. A isso chamo de pedalada de louvor e espírito esportivo.

Não era exatamente o Tour de France, ou la Vuelta de España, mas o entusiasmo do público, e meu, em nada deixavam por desejar. O ambiente era super alegre e descontraído. Estavam presentes políticos e oficiais militares. Para surpresa minha, os policias mais curiosos com o único “muzungo” ali presente, permitiram que eu fotografasse à vontade. O turista agradece, Kanimambo xamuares!

No entanto, umas horas depois estava eu em Manica fotografando um mercado de rua, perto de um edifício de serviço público que nem havia notado. Foi quando percebi um arrastar de pés modorrentos se aproximando, e pelo canto do olho vi que pertenciam a uma policial que com um sorriso simpático deu início ao seguinte diálogo;

Boa tarde, tudo bem?
Sim, obrigado. E a senhora?
O que estás a fazer?
Fotografando o mercado.
Tens licença de fotógrafo?
Não, mas tenho licença de turista e custou 90,00 dólares.
Aaah mas essa não serve aqui pá. Tens que ir ali pagar a licença de fotógrafo.
Ali aonde?
Ali naquela porta onde está quel’home. Estás a ver lá ? Pois é , é lá o Posto.

Percebo um homem encostado na porta numa posição “cool” e respondo;

Sim, estou vendo. Mas não vou.
Se não fores tens problemas pá. Lá pagas e pronto, tá resolvido!
Mas tenho que pagar por quê?
Para proteger os fotógrafos que pagaram a licença aqui na terra.
Mas eu não estou tirando os clientes deles. Só estou fotografando recordações de viagem. Os moçambicanos quando vão lá fora, fazem a mesma coisa.
“Tio” mesmo assim, tem que pagar.”
Senhora, com todo o respeito que você merece. Vou parar de fotografar o mercado, mas não vou ao Posto. Vou sair daqui e encontrar um amigo, o senhor X, no Restaurante X. Se quiser que eu pague a licença vai ter que ir lá cobrar porque não tenho aqui a carteira. Deixei no carro lá. - Mentirinha que não dói, e ela fingiu que engoliu.
Aaaah, estou a entender. Então eras amigo do senhor X, é?
Isso, sou amigo e convidado dele.
Por quê não falaste logo pá? Podes ir. Havemos de aparecer...


PARTE 3

Segui meio chateado ao encontro do amigo, mas no restaurante ao perguntar por ele me responderam que ele “ainda”. Então sentei-me no terraço do restaurante e para acompanhar a espera, pedi uma cerveja e uns aperitivos. Logo depois estacionou bem em frente um carro esportivo. Um ET ali perdido.

Os vidros elétricos fumê baixam e deixam aparecer uma cara sorridente com óculos escuros, que mete logo conversa antes mesmo de sair do carro:

Ça va bien?
Oui merci.
Is better for you if I speak english?
O melhor mesmo é falar em português. Eu sou da terra.

Ele acaba se sentando na mesma mesa e damos inicio a uma conversa em inglês, apesar de perceber que não era o seu idioma materno. Penso que em francês ele estaria mais à vontade.

Logo ficou claro que ele queria vender-me pedras preciosas. Respondi que não era interessado em pedras e se ele me vendesse uma pedra-sabão pintada, como se fosse uma turmalina, eu não veria a diferença. Riu-se com a minha franqueza, e depois de perceber que não havia negócio a fazer, relaxou.
Como você é da terra, se você é branco?
Do mesmo jeito que o Obama não é o índio Touro Sentado, e é presidente dos Estados Unidos. Ou você acha que ele em África ou numa reserva de índios, se sentiria em casa como você e eu, aqui?
Yep man... mas os brothers lá são diferentes.
Em que planeta você esteve vivendo no últimos anos? Wake up man! O mundo nunca parou de mudar. Só a cabeça de alguns é que teima em não ir em frente. Feito mula velha com palas nos olhos.
Yesss man, It’s true, a população mundial está mudando. Eu vi no mundial e nas olimpíadas que as seleções nacionais da Europa estão cheias de afro e asiático-europeus. E acho que nunca pisaram na terra dos pais ou avós deles. 
Não é só no desporto que eu vejo pessoas na Europa com origens não europeias. E eles se identificam mais com o modo de vida do país onde nasceram e cresceram, do que com a terra dos seus antepassados. That’s normal man! 

Depois de falarmos sobre “o deus e o mundo” acabou me contando superficialmente como funciona o esquema do tráfico de pedras na fronteira do Zimbabwe. “Os moçambicanos do campo é que arriscam mais, porque atravessam a fronteira. Mas como ganham mais do que plantando milho e mandioca, eles arriscam. Quando são apanhados pela polícia do Zimbabwe apanham até sangrar. Eu mesmo já estive preso lá. Tive que pagar muito para não apanhar deles e regressar para Moçambique depois de uns meses. Agora não faço mais esse job. Nós os africanos do norte temos as connections que os da terra não têm. Depois vendemos para alguns árabes e asiáticos com money. Eles têm as connections lá fora”.

Mais tarde um carro passou e deu dois toques de buzina. O meu parceiro de conversa se despede com o mesmo sorriso da chegada. “Enjoy your trip brother! Don’t forget, if you want any business, just ask me, ok? ”

Novamente sozinho, fiquei pensando com os meus botões; E os “havemos de aparecer” estão preocupados para que eu pague a licença de fotógrafo?! ...Acabaram por nunca aparecer.

Tudo bem que o policial de rua que nem sempre teve a sorte de frequentar uma escola de qualidade ou grau mais elevado, não tem culpa. Mas isso não pode ser a explicação ou desculpa, para usarmos como uma esteira e nela nos deitarmos eternamente, esperando a mudança. Como se a posição e conduta oficial fosse um fenômeno natural, e não humano, que não se possa mudar a médio e curto prazo. E o médio prazo, a democracia moçambicana, já tem os primeiros pelos na cara crescendo.

Ajustar as leis, informar e profissionalizar a segurança pública, também é obrigação de um Estado Democrático.

Aliás, fotógrafos profissionais da imprensa ou arte, e donos de estúdio de fotografia, me confirmaram como são desrespeitados. Me descrevendo situações que mostram o quão problemático ainda é, se fotografar em Moçambique em pleno 2013!!!

A política, a segurança pública e as diversas secretarias de turismo regionais, com um maior nível de instrução que a média nacional, não podem continuar se comportando como cegos, surdos e mudos. Optando por uma espécie de analfabetismo voluntário.

Por quê fomentar a fobia da fotografia pública no mundo tecnológico de hoje? Afinal quem prepara atentados, há anos que usa de outros recursos de informação.
Ou será que em Moçambique há ainda quem acredite que a proibição da fotografia pública teria evitado as chacinas perpetradas por radicais no mundo afora? Como no shopping center na Nigéria, Trade Center in NYC. Ou que é com fotografia pública que as atuais guerra civis no Iraque e Síria , ou os ataques israelitas na Palestina, são planejadas? Quem acredita nisso, deve também acreditar que a fotografia rouba as almas.

Nunca terão eles ouvido ou lido sobre o programa “google earth”?

Qualquer cidadão que esteja fora da China, Irão, e outras ditaduras paradas no tempo, tem acesso na internet a esse programa gratuitamente. Com ele se pode ver via satélite até o penico esquecido em qualquer jardim caseiro de Moçambique ou qualquer parte do mundo.
E que eu saiba ultimamente, ninguém bombardeou o penico de ninguém baseado numa foto de máquina fotográfica!

Está na hora de parar com a *Putinice!!!
Há que ser honesto e contemporâneo.

A corrupção também se combate com bom senso, ao se abdicar de leis inúteis e abusivas, que só favorecem a fonte de renda dos corruptos.

Sinceros cumprimentos de um entusiasta por tudo de bom que Moçambique representa, e que mesmo sendo da terra quer voltar para fotografar só com o visto de TURISTA. Sem ter que pagar refresco para ninguém, e vir a se sentir obrigado a infringir uma lei medieval.

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*Putinice – (Não procurar no dicionário) Palavra da minha linguagem pessoal que uso como sinônimo de hipocrisia. Oriundo da palavra Putin. De acordo com a definição politicamente correta, conhecido como “O Agente Pseudo-Democrata”. Ou de acordo com a definição de calão popular, ” O Caçador de Meninas Roqueiras que não dão bola p’ra ele”.

*Mwana – Criança, em uma das línguas nacionais moçambicanas.


4 comentários:

  1. Essa sensação de controle do "clik" também passei quando estive em Moçambique em Maio de 2012. Até por um lavador de carros na rua fui repreendido, quando fotografava a Igreja da Polana (espremedor de laranja) e acabei por fotografar uma bela casa que é uma agência bancária. Passei também por incomodo similar dentro do aeroporto de Maputo quando retornava ao Brasil, que para registrar os últimos minutos no solo moçambicano puxei da arma... digo, da máquina fotografica, e quando dei o segundo clik em sequência me apareceram 3 policias , cada um vindo de pontos diferentes e em coro disseram: "Não pode fotografar!"...
    Xiça!!!

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  2. Também gosto muito de " CLIKAR" ... sem milando né camaradas!!

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  3. Um amigo e colega de escola é que me contou também algo sobre esses "clicks" porque tinha clicado a casa dele no tempo de antigamente, ainda por cima a tal casa dele de antigamente, se nao estou em erro era agora a p. judiciaria eheh.
    Sorry por mudar de assunto, no quero realmente dizer:
    Acima de tudo bonita estória, e achei escrita com alma, talvez por ter sido contada pela persona em causa.
    Forte abrazo Tomaria
    de Joaoroldao

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  4. Também gostei e subscrevo o que o meu grande amigo Egidio comentou.Abraço a todos.

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